segunda-feira, 12 de julho de 2010

Roland Barthes - "A morte do autor"


Seguindo o raciocínio de Blanchot (ver postagem anterior) de que a fala poética não é a fala de uma pessoa, mas sim, a fala da própria “fala”, ou seja, a própria linguagem se engendrando por si mesma no poema, somos remetidos ao que Roland Barthes designa como “morte do autor”. Para Barthes, o autor não é o proprietário da linguagem, pois é a própria linguagem que fala na obra. A escrita é uma experiência impessoal. Portanto, o autor não antecede e nem excede, mas nasce no aqui e agora da obra.
Então, vale a pena pessoal, conferir trechos deste belo texto de Roland Barthes intitulado “A morte do autor”, publicado em seu livro “O Rumor da Língua”. Deixemos que sua fala fale por si mesma!!!



A MORTE DO AUTOR (trechos)

“O autor reina ainda nos manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu diário íntimo, a pessoa e a obra; a imagem da literatura que se pode encontrar na cultura corrente está tiranicamente centralizada no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas paixões; a crítica consiste ainda, o mais das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o fracasso do homem Baudelaire, a de van Gogh é a loucura, a de Tchaikovski é o seu vício: a explicação da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse sempre afinal a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, a entregar a sua ‘confidência’.
Apesar de o império do Autor ser ainda muito poderoso (a nova crítica muitas vezes não fez mais do que consolidá-lo), é sabido que há muito certos escritores vêm tentando abalá-lo. Na França, Mallarmé, sem dúvida o primeiro, viu e previu em toda a sua amplitude a necessidade de colocar a própria língua no lugar daquele que dela era até então considerado proprietário; para ele, como para nós, é a linguagem que fala, não o autor; escrever é, através de uma impessoalidade prévia — que não se deve em momento algum confundir com a objetividade castradora do romancista realista —, atingir esse ponto onde só a linguagem age, "performa", e não "eu": toda a poética de Mallarmé consiste em suprimir o autor em proveito da escritura (o que vem a ser, como se verá, devolver ao leitor o seu lugar)”. (...)
“O Surrealismo, finalmente, para não sair dessa pré-história da modernidade, não podia, sem dúvida, atribuir à linguagem um lugar soberano, na medida em que a linguagem é sistema, e aquilo que se tinha em mira nesse movimento era, romanticamente, uma subversão direta dos códigos — aliás ilusória, pois não se pode destruir um código, pode-se apenas "jogar" com ele —; mas recomendando sempre frustrar bruscamente os sentidos esperados (era a famosa ' 'sacudida'' surrealista), confiando à mão o cuidado de escrever tão depressa quanto possível aquilo que a cabeça mesmo ignora (era a escritura automática), aceitando o princípio e a experiência de uma escritura coletiva, o Surrealismo contribuiu para dessacralizar a figura do Autor”. Finalmente, fora da própria literatura (a bem dizer tais distinções se tornam superadas), a lingüística acaba de fornecer para a destruição do Autor um argumento analítico precioso, mostrando que a enunciação em seu todo é um processo vazio que funciona perfeitamente sem que seja necessário preenchê-lo com a pessoa dos interlocutores: lingüisticamente, o autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como "eu" outra coisa não é senão aquele que diz "eu": a linguagem conhece um "sujeito", não uma "pessoa", e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para "sustentar" a linguagem, isto é, para exauri-la”.
(...) “O Autor, quando se crê nele, é sempre concebido como o passado de seu livro: o livro e o autor colocam-se por si mesmos numa mesma linha, distribuída como um antes e um depois: considera-se que o Autor nutre o livro, quer dizer que existe antes dele, pensa, sofre, vive por ele; está para a sua obra na mesma relação de antecedência que um pai para com o filho. Bem ao contrário, o escritor moderno nasce ao mesmo tempo que seu texto; não é, de forma alguma, dotado de um ser que precedesse ou excedesse a sua escritura, não é em nada o sujeito de que o seu livro fosse o predicado; outro tempo não há senão o da enunciação, e todo texto é escrito eternamente aqui e agora. É que escrever não pode mais designar uma operação de registro, de verificação, de representação, de "pintura", mas sim aquilo que os lingüistas chamam de performativo, forma verbal rara (usada exclusivamente na primeira pessoa e no presente), na qual a enunciação não tem outro conteúdo (outro enunciado) que não seja o ato pelo qual ela se profere: algo como o Eu declaro dos reis ou o Eu canto dos poetas muito antigos; o escritor moderno, tendo enterrado o Autor, não pôde mais acreditar, segundo a visão patética dos seus predecessores, que tem a mão demasiado lenta para o seu pensamento ou para a sua paixão, e que, conseqüentemente, fazendo da necessidade lei, deve acentuar esse atraso e ''trabalhar" indefinidamente a sua forma; para ele, ao contrário, a mão, destacada de qualquer voz, levada por um puro gesto de inscrição (e não de expressão), traça um campo sem origem — ou que, pelo menos, outra origem não tem senão a própria língua, isto é, aquilo mesmo que continuamente questiona toda origem.
Uma vez afastado o Autor, a pretensão de "decifrar" um texto se torna totalmente inútil. Dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura. Essa concepção convém muito à crítica, que quer dar-se então como tarefa importante descobrir o Autor (ou as suas hipóteses: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra: encontrado o Autor, o texto está "explicado", o crítico venceu; não é de se admirar, portanto, que, historicamente, o reinado do Autor tenha sido também o do Crítico, nem tampouco que a crítica (mesmo a nova) esteja hoje abalada ao mesmo tempo que o Autor. Na escritura múltipla, com efeito, tudo está para ser deslindado, mas nada para ser decifrado; a estrutura pode ser seguida, ' 'desfiada" em todas as suas retomadas e em todos os seus estágios, mas não há fundo; a escritura propõe sentido sem parar, mas é para evaporá-lo: ela procede a uma isenção sistemática do sentido. Por isso mesmo, a literatura (seria melhor passar-se a dizer a escritura), recusando designar ao texto (e ao mundo como texto) um "segredo", isto é, um sentido último, libera uma atividade a que se poderia chamar contrateológica, propriamente revolucionária, pois a recusa de parar o sentido é finalmente a recusa de Deus e de suas hipóstases: a razão, a ciência, a lei”.

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