sexta-feira, 9 de julho de 2010

Murilo Mendes


Murilo Monteiro Mendes (Juiz de Fora, 13 de maio de 1901Lisboa, 13 de agosto de 1975) foi um poeta brasileiro, expoente do Surrealismo brasileiro.
Serão apresentados aqui alguns de seus poemas publicados nas obras As Metamorfoses (1944) e Poesia Liberdade (1947). Tais obras tem como característica o imaginário surrealista. Os poemas exprimem uma lógica diferente, aquela dos sonhos, dos delírios, da fantasia e da imaginação sem limites. A ordem do mundo, do espaço e do tempo caem por terra. O poema subverte a natureza, subverte a ordem do mundo, possibilitando novas formas de experimentar os elementos da vida...novas formas de se encantar com o mundo!!! Abraços!!!
O EMIGRANTE

A Henri Michaux


A nuvem andante acolhe o pássaro
Que saiu da estátua de pedra.
Sou aquela nuvem andante,
O pássaro e a estátua de pedra.

Recapitulei os fantasmas,
Corri de deserto em deserto,
Me expulsam da sombra do avião.
Tenho sede generosa,
Nenhuma fonte me basta.
Amigo! Irmão! Vou te levar
O trigo das terras do Egito,
Até o trigo que não tenho.
Egito! Egito! Amontoei
Para dar um dia a outrem:
A sombra fértil de Deus
Não me larga um só instante.
Levai-me o astro da febre:
Eu vos deixo minha sede,
Nada mais tenho de meu.

(de As Metamorfoses)



ESTUDO PARA UM CAOS


O último anjo derramou seu cálice no ar.

Os sonhos caem na cabeça do homem,
As crianças são expelidas do ventre materno,
As estrelas se despregam do firmamento.
Uma tocha enorme pega fogo no fogo,
A água dos rios e dos mares jorra cadáveres.
Os vulcões vomitam cometas em furor
E as mil pernas da Grande dançarina
Fazem cair sobre a terra uma chuva de lodo.
Rachou-se o teto do céu em quatro partes:
Instintivamente eu me agarro ao abismo.
Procurei meu rosto, não o achei.
Depois a treva foi ajuntada à própria treva.

(de As Metamorfoses)

A LIBERDADE


Um buquê de nuvens:

O braço duma constelação
Surge entre as rendas do céu.

O espaço transforma-se a meu gosto,
É um navio, uma ópera, uma usina,
Ou então a remota Persépolis.

Admiro a ordem da anarquia eterna,
A nobreza dos elementos
E a grande castidade da Poesia.

Dormir no mar! Dormir nas galeras antigas!

Sem o grito dos náufragos,
Sem os mortos pelos submarinos.

(de As Metamorfoses)

***
O SONO


Dorme.
Dorme o tempo em que não podias dormir.
Dorme não só tu,
Prepara-te para dormir teu corpo e teu amor contigo.
Dorme o que não foste, o que nunca serás.
Dorme o incêndio dos atos esquecidos,
A qualidade a distância o rumo do pensamento.

O pássaro magnético volta-se,
As árvores trocam os braços,
O castelo parou de andar.

Dorme.
Que pena não poder me ver – puro – dormindo.

(de Poesia Liberdade)



ABSTRAÇÃO


O gramofone não diz que mundo me acho.
Onde ancora a âncora?
Que ligação têm os dedos com a dália que os segura?
O poema olha para mim, e, fascinado, me compõe.
A onde decretou medidas a meu respeito,
Meus braços resolvem atos
Cada um para seu lado.
Não tenho a ver comigo,
Nem me conheço:
Um estrangeiro pensa em mim fora do tempo
A idéia da máquina do meu corpo dentro do tempo.

(de Poesia Liberdade)



DESEJO


Ao sopro da transfiguração noturna
Distingo os fantasmas de homens
Em busca da liberdade perdida:

Quisera possuir cem milhões de bocas,
Quisera possuir cem milhões de braços
Para gritar por todos eles
E de repente deter a roda descomunal
Que tritura corpos e almas
Com direito ao orvalho da manhã,
À presença do amor, à música dos pássaros,
A estas singelas flores, a este pão.

(de Poesia Liberdade)

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