segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Antônio José Forte




O poeta em Lisboa



Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.

Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha - numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.


in "Uma Faca nos Dentes"




quinta-feira, 30 de junho de 2011

Afonso Henriques Neto




CÃO


não vou mais respirar
nunca mais ordenhar
para escrever um livro.
não vou às bacantes
ao verão de vidro sobre o mar
dos diamantes.
ficarei só com meu bulldog
(nunca tive um
apenas uma gargalhada)
só com minhas pulgas
minha pele de vulcões silenciosos
esta espécie de incêndio solitário
brilho agudo
animal titânico.
(o cão rosna
e quando todos adormecem
o licor do sonho adoça o nervo da noite
mantém o invisível).
agora só vou ao poema
pela paixão a ganir nas palavras
pelo gozo de chupá-las
corpo contra corpo
cuspo na realidade.
foda-se a musa
as cordilheiras de luz
coxas de outro verão.
o tempo sempre foi impaciência.
só agora que perdi os dentes
e o rugido
descubro a contragosto meu bulldog.
mesmos acordes aleatórios
músculos violentos sobre a presa
sais do amor
ácidos da fortuna
e estamos mortos, baby.
mas fodidos assim é que brilhamos.
não quero mais harmonia
para escrever o livro.
não vou escrevê-lo.




(in Ser Infinitas Palavras)








Sobre o poeta:




Nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1944, filho de Hymirene Papi de Guimaraens e do poeta Alphonsus de Guimaraens Filho.



Primeiros livros de poesia: O misterioso ladrão de Tenerife (um dos primeiros livros da chamada “geração marginal”, em co-autoria com Eudoro Augusto), em 1972, reeditado em 1977 pela Sette Letras, comemorativo dos 25 anos de seu lançamento. Restos & estrelas & fraturas ((1975); Ossos do paraíso (1981); Tudo nenhum (1985); Abismo de violinos 1995).

terça-feira, 28 de junho de 2011

Ousadia noturna



A neblina na rua

perdura

nos cálculos da aurora

a esquiva

da

noite

que dribla o dia



Gabriel Nogueira Ferreira in O Corpo Remoto.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Octávio Paz, uma vez mais...


"A linguagem indica, representa; o poema não explica nem representa: apresenta. Não alude à realidade; pretende - e às vezes consegue - recriá-la. Portanto, a poesia é um penetrar, um estar ou ser na realidade".


Octávio Paz in Signos em Rotação.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Georges Bataille




"a sorte dos amantes é o mal (o desequilíbrio) a que o amor físico os obriga. são condenados, sem fim, a arruinar a harmonia entre eles, a combater na noite. pelo preço de um combate, pelas chagas que fazem um ao outro é que se unem...o amor só tem por objeto o risco, e só ele, o risco, força para amar."

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Eis o tempo

Salvador Dalí



Eis o tempo. O tempo em que a ponta do lápis simpatiza com a ponta dos olhos; quando o coração bombeia a verve e o sonho circula ralo e alegre até o halo incandescente do cérebro. Decerto, trata-se de um momento único no extraordinário segundo em que os dedos contemplam o que a imaginação sorrateiramente tece junto à insone semente da voz; chegando a vez dos ouvidos testemunhando a labareda de um alarido que se ergue em frenesi até a prece pavimentada no céu, quando o impossível desvencilha-se de seu véu vislumbrando o invisível.


by Gabriel Nogueira Ferreira