A falta faz poesia - por Gloria Leal
O anjo Damiel, em "Asas do Desejo" de Wim Wenders, torna-se humano por amor a um mulher. No final do filme, ele escreve: "Eu sei (...) agora (...) o que (...) nenhum anjo (...) sabe." O que Damiel sabe, segundo Betty Fuks (2), é que a condição de mortal faz o sujeito buscar a imortalidade no desejo. Por sua vez, a trapezista Marion conquistou a angelitude ao perceber que a vida e os objetos que nela desfilam são apenas transitórios, mas nem por isso menos belos.
Stuart Schneiderman(3) diz que imortal significa simplesmente não mortal, e não mortal nem sempre quer dizer vivo para sempre ou eternamente. Não mortal é também uma característica dos mortos. "Só os vivos são mortais. A busca da imortalidade, que em geral interpretamos como uma busca da vida eterna, um desejo de negar a morte, é apenas outro nome para o desejo de morte."
Desejo de vida. Desejo de morte. Desejo súbito de fazer uma poesia. Tão necessária. Uma que leve embora essa angústia, o solúço engasgado. Uma que traga de volta o sonho. Poesia é tentativa de realização de desejos. Difusos, confusos mesmo, os sentimentos só serão entendidos pelo autor depois. Depois de dar à luz sua poesia.
Ser falante pode ser praga, mas ser escrevente é bênção. É um dos possíveis destinos da pulsão. De vida? De morte? O poeta não vive tais dicotomios.
Escrever poesia é lidar com o mistério sem o compromisso, alías impossível, de explicá-lo.
Se queremos explicar o mistério, somos cientistas. Se o respeitamos, mesmo privando da sua intimidade, somos poetas e dizemos coisas que não sabíamos saber. Fernando Pessoa(4) pergunta: "Tens como Hamlet, o pavor do desconhecido? Mas o que é conhecido? Oque é que tu conheces, para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?"
O mistério, o inusitado, o imprevisível convivem com a poesia. Também na psicanálise. Entre uma linha e outra, nos pedaços em que não se escreve nada, aí ele surge. O poeta e o inconsciente falam por enigmas.
Escrever como quem inspira (um verso) e expira (outro verso). Exercício respiratório, associação livre de idéias, catarse, espasmo, orgasmo, seja o que for, faz bem. Apesar do sofrimento de não conseguir dizer o que se deseja. Como sempre. Apesar de o desejo não se inscrever, realiza-se, por alguns instantes, o desejo de fazer uma poesia. Plantar amores-perfeitos, narcisos e bromélias na borda do vazio existencial.
Lacan(5) diz que em toda forma de sublimação o vazio será determinante e que toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio. Sublinha a importância da linguagem por lidar com o significante que é "aquilo que, na ordem das artes, confere sua primazia à poesia."
Lacan(5) diz que em toda forma de sublimação o vazio será determinante e que toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio. Sublinha a importância da linguagem por lidar com o significante que é "aquilo que, na ordem das artes, confere sua primazia à poesia."
A linguagem precede o homem, é condição fundante do humano. Denunciadora e encobridora da falta, ela nos impele à comunicação e nos remete à solidão. Linguagem é crime e castigo. Crime de Adão e Eva, que comeram o fruto proibido do saber e descobriram a sexualidade. Assim, foram expulsos do paraíso animal e condenados à liberdade. Perdemos o instinto, esse fabuloso programa de comportamentos, e ganhamos a pulsão, essa desconhecida.
Ganhamos a dúvida (quem somos? para que somos? somos?, a possibilidade de morrer ( o que será então de mim?), e o desejo de fazer de conta que somos ainda animais naturais e que nossos desejos podem ser satisfeitos. Assim como as necessidades dos animais. Pura ilusão. O desejo do homem é insaciável. A completude tão almejada é impossível. Isto porque o desejo é definido pelo vazio. Um desejo aponta sempre para outro desejo e assim prosseguimos na crença insana de que existe um ou vários objetos adequados que podem ser encontrados no mercado da vida. A ilusão do encontro, chamamos de felicidade. Essa eternidade que logo termina.
Ganhamos a dúvida (quem somos? para que somos? somos?, a possibilidade de morrer ( o que será então de mim?), e o desejo de fazer de conta que somos ainda animais naturais e que nossos desejos podem ser satisfeitos. Assim como as necessidades dos animais. Pura ilusão. O desejo do homem é insaciável. A completude tão almejada é impossível. Isto porque o desejo é definido pelo vazio. Um desejo aponta sempre para outro desejo e assim prosseguimos na crença insana de que existe um ou vários objetos adequados que podem ser encontrados no mercado da vida. A ilusão do encontro, chamamos de felicidade. Essa eternidade que logo termina.
Segundo Lacan, o inconsciente é da ordem do não realizado e é estruturado como uma linguagem. Ambos são regidos pela ordem simbólica. os símbolos são criados a partir da ausência da coisa. Falamos e cantamos as ausências, o perdido e o nunca encontrado. Do fort-da do netinho de Freud até Fernando Pessoa:
"E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase. E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais de inventa."
O ato poético lida com o impossível porque revela algo do Real, que é da ordem do impossível. Mas o poeta insiste, insiste em simbolizar o Real e seus infinitos desdobramentos. Insiste no desejo, ou nele o desejo insiste, de fazer outra poesia. Uma que diga melhor o que se quer dizer e não consegue.
"Gastei uma hora pensando um verso/ que a pena não quer escrever/ No entanto ele está cá dentro/ inquieto, vivo./ Ele está cá dentro/ e não quer sair./ Mas a poesia deste momento/ inunda minha vida inteira." (Carlos Drummond de Andrade).
O conteúdo latente do poema, como o do sonho, também é mais rico que o manifesto. O poeta aspira ao poema perfeito porque a vida não é perfeita nem completa e ele se sente completo ao escrever. Mas o poeta escreve sem saber por quê.
"Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste: Sou poeta." (Cecília Meireles).
O sentimento poético que vive em todos nós não pode ser transposto para o papel ou para a voz sem perda de substância. Algo se perde na transposição, como o objeto a. Acontece que poesia se faz com palavras. As idéias e afetos servem como substrato. Há que transpirar o inefável e isto exige suor. Não é só derramar uns tantos sentimentos no papel, achar bonito e atravessar melhor a noite. Para a associação de idéias (livre como nenhuma fala de analisando) tornar-se arte, deverá ser trabalhada. Idéias e afetos são areia e água, argamassa da construção construída "só depois". Então você acorda e vai ler o lindo poema da vérspera. Acha um horror. Fuma dois cigarros em seguida, toma algumas providências caseiro-burocráticas e vai dar mais uma espiada no papel. Lê agora como se fosse de outro e de fato o inconsciente é o discurso do Outro. Resolve que pode melhorar o texto e aí começa a carpintaria.
É um trabalho letra a letra, palavra a palavra, linha a linha. Pouco sobra, quando sobra. Michelangelo divide as artes em "artes de pôr", como a pintura, e "artes de tirar", como a escultura. Na poesia ocorrem esses dois movimentos. Para que, além de terapêutica, seja uma boa poesia, é necessário primeiro estender os sentimentos livremente no papel e só depois fazer o corte de palavras. Isto confere intensidade ao texto e arruma seu coração.
A incompletude, o vazio, a angústia, a morte são muito falados na poesia. O comum dos mortais sofre das mesmas perplexidades dos poetas. Assim sou eu. Assim é você. Monte de linhas embaraçadas, monte de palavras angasgadas, monte de todas as coisas vividas e morridas. No mar dos sentimentos, o poeta pesca suas palavras. O céu é do condor e a poesia, assim como a praça, é de todos.
Recomendo fazer poesia, ou tentar. Cantar os seus exílios: paraíso perdido, mãe, pai, marido que foi embora, cidade natal, infância. Cantar até sentir que não está exilado nem sozinho. Somos parte de tudo e tudo parte de nós. Nada passou. Nada se passou a não ser um arrepio. De vida, de morte. Sossega, criança. Você morreu tantas vezes que já deveria estar acostumada.
"A morte é a curva da estrada, / Morrer é só não ser visto." - (Fernando Pessoa)
O poeta russo Sierguéi Iessiénin suicidou-se num quarto do Hotel Inglaterra, em Leningrado. Antes de morrer escreveu, com o próprio sangue, a última poesia. Seu amigo Maiakoviski, que escolheu continuar vivo mesmo sabendo que "Nesta vida morrer não é difícil / O difícil é a vida e o seu ofício", declarou no poema dedicado ao jovem Iessiénin: "Talvez, se houvesse tinta no Inglaterra / Você não cortaria os pulsos." Escrever poesia pode salvar a sua vida. Pelo mesnos de ser aborrecida, pouco vivida, distraída. Ajuda a conviver com o espanto de estar vivo desconfiando que vai morrer. Também salva a vida dos seus mortos, imortalizando-os. Ou enterrando no papel o que tem de ser enterrado. O luto não precisa ser patológico.
Trabalho publicado, originalmente, no Anuário Brasileiro de Psicanálise, 1992/1993, Editora Relume-Dumará.
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