domingo, 19 de dezembro de 2010

Paulo Leminski


LUZES
Acendo a lâmpada às seis horas da tarde
Acenda a luz dos lampiões
Inflame a chama dos salões
Fogos de línguas de dragões
Vagalumes
Numa nuvem de poeira de neon
Tudo claro
Tudo claro à noite, assim que é bom

A luz
Acesa na janela lá de casa
O fogo
O foco lá no beco e um farol
Essa noite
Essa noite vai ter sol
Essa noite
Essa noite vai ter sol

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Jim Morrison


"Uma Festa de Amigos"



Estou farto de dúvidas
De viver à luz de um certo sul
Laços cruéis
Os servos têm o poder
Homens ignóbeis e as suas mulheres vulgares
Puxam cobertores vulgares sob
Os nossos marinheiros

Estou farto das caras soturnas
Que me olham das torres televisivas
Quero rosas nos canteiros
do meu jardim, compreendido?
Bebês reais e rubis
Devem agora tomar o posto
Dos estranhos abortos na lama
Estes mutantes, pasto de sangue
Para a planta semeada

Estão à espera de nos arrastar até
ao jardim separado
Sabes o quão pálida e excitantemente indesejada
vem a morte numa hora estranha,
sem anunciar, imprevista
Como um hóspede inimigo que levamos
para a cama
A morte faz anjos de todos nós
e dá-nos asas
Onde tínhamos ombros macios
como as garras
dos corvos

Chega de dinheiro, chega de luxos
Este outro reino é de longe melhor
Até que a sua outra face mostre incesto
E a cega obediência e uma lei vegetal

Não irei aí
Prefiro uma festa de amigos
À grande família

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Arthur Rimbaud




CANÇÃO DA TORRE MAIS ALTA



Que venha, que venha
a hora da paixão .

Tenho tido paciência, nunca esquecerei .
Temores e dores
para os céu se foram .
E uma sede insana
tolda as minhas veias.

Que venha, que venha
a hora da paixão.

Estou como o campo
entregue ao olvido,
crescido e florido
de joios, resinas,
ao bordão selvagem
das moscas imundas.

Que venha, que venha
a hora da paixão.


Arthur Rimbaud in "Uma temporada no inferno"

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Poesia e Psicanálise

Ismael Nery
A falta faz poesia - por Gloria Leal


O anjo Damiel, em "Asas do Desejo" de Wim Wenders, torna-se humano por amor a um mulher. No final do filme, ele escreve: "Eu sei (...) agora (...) o que (...) nenhum anjo (...) sabe." O que Damiel sabe, segundo Betty Fuks (2), é que a condição de mortal faz o sujeito buscar a imortalidade no desejo. Por sua vez, a trapezista Marion conquistou a angelitude ao perceber que a vida e os objetos que nela desfilam são apenas transitórios, mas nem por isso menos belos.
Stuart Schneiderman(3) diz que imortal significa simplesmente não mortal, e não mortal nem sempre quer dizer vivo para sempre ou eternamente. Não mortal é também uma característica dos mortos. "Só os vivos são mortais. A busca da imortalidade, que em geral interpretamos como uma busca da vida eterna, um desejo de negar a morte, é apenas outro nome para o desejo de morte."

Desejo de vida. Desejo de morte. Desejo súbito de fazer uma poesia. Tão necessária. Uma que leve embora essa angústia, o solúço engasgado. Uma que traga de volta o sonho. Poesia é tentativa de realização de desejos. Difusos, confusos mesmo, os sentimentos só serão entendidos pelo autor depois. Depois de dar à luz sua poesia.
Ser falante pode ser praga, mas ser escrevente é bênção. É um dos possíveis destinos da pulsão. De vida? De morte? O poeta não vive tais dicotomios.

Escrever poesia é lidar com o mistério sem o compromisso, alías impossível, de explicá-lo.
Se queremos explicar o mistério, somos cientistas. Se o respeitamos, mesmo privando da sua intimidade, somos poetas e dizemos coisas que não sabíamos saber. Fernando Pessoa(4) pergunta: "Tens como Hamlet, o pavor do desconhecido? Mas o que é conhecido? Oque é que tu conheces, para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?"

O mistério, o inusitado, o imprevisível convivem com a poesia. Também na psicanálise. Entre uma linha e outra, nos pedaços em que não se escreve nada, aí ele surge. O poeta e o inconsciente falam por enigmas.
Escrever como quem inspira (um verso) e expira (outro verso). Exercício respiratório, associação livre de idéias, catarse, espasmo, orgasmo, seja o que for, faz bem. Apesar do sofrimento de não conseguir dizer o que se deseja. Como sempre. Apesar de o desejo não se inscrever, realiza-se, por alguns instantes, o desejo de fazer uma poesia. Plantar amores-perfeitos, narcisos e bromélias na borda do vazio existencial.
Lacan(5) diz que em toda forma de sublimação o vazio será determinante e que toda arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno desse vazio. Sublinha a importância da linguagem por lidar com o significante que é "aquilo que, na ordem das artes, confere sua primazia à poesia."
A linguagem precede o homem, é condição fundante do humano. Denunciadora e encobridora da falta, ela nos impele à comunicação e nos remete à solidão. Linguagem é crime e castigo. Crime de Adão e Eva, que comeram o fruto proibido do saber e descobriram a sexualidade. Assim, foram expulsos do paraíso animal e condenados à liberdade. Perdemos o instinto, esse fabuloso programa de comportamentos, e ganhamos a pulsão, essa desconhecida.
Ganhamos a dúvida (quem somos? para que somos? somos?, a possibilidade de morrer ( o que será então de mim?), e o desejo de fazer de conta que somos ainda animais naturais e que nossos desejos podem ser satisfeitos. Assim como as necessidades dos animais. Pura ilusão. O desejo do homem é insaciável. A completude tão almejada é impossível. Isto porque o desejo é definido pelo vazio. Um desejo aponta sempre para outro desejo e assim prosseguimos na crença insana de que existe um ou vários objetos adequados que podem ser encontrados no mercado da vida. A ilusão do encontro, chamamos de felicidade. Essa eternidade que logo termina.

Segundo Lacan, o inconsciente é da ordem do não realizado e é estruturado como uma linguagem. Ambos são regidos pela ordem simbólica. os símbolos são criados a partir da ausência da coisa. Falamos e cantamos as ausências, o perdido e o nunca encontrado. Do fort-da do netinho de Freud até Fernando Pessoa:
"E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase. E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais de inventa."

O ato poético lida com o impossível porque revela algo do Real, que é da ordem do impossível. Mas o poeta insiste, insiste em simbolizar o Real e seus infinitos desdobramentos. Insiste no desejo, ou nele o desejo insiste, de fazer outra poesia. Uma que diga melhor o que se quer dizer e não consegue.


"Gastei uma hora pensando um verso/ que a pena não quer escrever/ No entanto ele está cá dentro/ inquieto, vivo./ Ele está cá dentro/ e não quer sair./ Mas a poesia deste momento/ inunda minha vida inteira." (Carlos Drummond de Andrade).


O conteúdo latente do poema, como o do sonho, também é mais rico que o manifesto. O poeta aspira ao poema perfeito porque a vida não é perfeita nem completa e ele se sente completo ao escrever. Mas o poeta escreve sem saber por quê.
"Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste: Sou poeta." (Cecília Meireles).

O sentimento poético que vive em todos nós não pode ser transposto para o papel ou para a voz sem perda de substância. Algo se perde na transposição, como o objeto a. Acontece que poesia se faz com palavras. As idéias e afetos servem como substrato. Há que transpirar o inefável e isto exige suor. Não é só derramar uns tantos sentimentos no papel, achar bonito e atravessar melhor a noite. Para a associação de idéias (livre como nenhuma fala de analisando) tornar-se arte, deverá ser trabalhada. Idéias e afetos são areia e água, argamassa da construção construída "só depois". Então você acorda e vai ler o lindo poema da vérspera. Acha um horror. Fuma dois cigarros em seguida, toma algumas providências caseiro-burocráticas e vai dar mais uma espiada no papel. Lê agora como se fosse de outro e de fato o inconsciente é o discurso do Outro. Resolve que pode melhorar o texto e aí começa a carpintaria.
É um trabalho letra a letra, palavra a palavra, linha a linha. Pouco sobra, quando sobra. Michelangelo divide as artes em "artes de pôr", como a pintura, e "artes de tirar", como a escultura. Na poesia ocorrem esses dois movimentos. Para que, além de terapêutica, seja uma boa poesia, é necessário primeiro estender os sentimentos livremente no papel e só depois fazer o corte de palavras. Isto confere intensidade ao texto e arruma seu coração.
A incompletude, o vazio, a angústia, a morte são muito falados na poesia. O comum dos mortais sofre das mesmas perplexidades dos poetas. Assim sou eu. Assim é você. Monte de linhas embaraçadas, monte de palavras angasgadas, monte de todas as coisas vividas e morridas. No mar dos sentimentos, o poeta pesca suas palavras. O céu é do condor e a poesia, assim como a praça, é de todos.

Recomendo fazer poesia, ou tentar. Cantar os seus exílios: paraíso perdido, mãe, pai, marido que foi embora, cidade natal, infância. Cantar até sentir que não está exilado nem sozinho. Somos parte de tudo e tudo parte de nós. Nada passou. Nada se passou a não ser um arrepio. De vida, de morte. Sossega, criança. Você morreu tantas vezes que já deveria estar acostumada.
"A morte é a curva da estrada, / Morrer é só não ser visto." - (Fernando Pessoa)

O poeta russo Sierguéi Iessiénin suicidou-se num quarto do Hotel Inglaterra, em Leningrado. Antes de morrer escreveu, com o próprio sangue, a última poesia. Seu amigo Maiakoviski, que escolheu continuar vivo mesmo sabendo que "Nesta vida morrer não é difícil / O difícil é a vida e o seu ofício", declarou no poema dedicado ao jovem Iessiénin: "Talvez, se houvesse tinta no Inglaterra / Você não cortaria os pulsos." Escrever poesia pode salvar a sua vida. Pelo mesnos de ser aborrecida, pouco vivida, distraída. Ajuda a conviver com o espanto de estar vivo desconfiando que vai morrer. Também salva a vida dos seus mortos, imortalizando-os. Ou enterrando no papel o que tem de ser enterrado. O luto não precisa ser patológico.



Trabalho publicado, originalmente, no Anuário Brasileiro de Psicanálise, 1992/1993, Editora Relume-Dumará.